Vocação
Entre as crises e a cruz

No último Seminário Vocacional Nacional acontecido em Aparecida/SP, e dentro do contexto
da Romaria dos Animadores Vocacionais, um tema chamou atenção: as crises e a sua relação com a
cruz. Não é um assunto novo pensar dentro da dimensão da vocação que possa haver crises, mas qual a sua relação com a cruz? Como podemos ressignificar os momentos de aridez vocacional à luz da experiência da cruz de Jesus?
O chamado vocacional comporta uma firme decisão de seguir a Jesus Cristo. Não existe vocação sem uma
adesão firme e comprometida com o Mestre de Nazaré. Ele nos chama e vai continuar chamando enquanto não respondermos a esse chamado e, ainda assim, durante a caminhada vocacional nos propõe muitas vezes uma mudança de direção. O chamado de Deus se dá na realidade concreta dos homens e mulheres que se dispõem a ouvir a sua voz. Somos chamados na realidade histórica de cada um e isso, pode ser uma experiência um tanto quanto desafiadora para alguns, pois o chamado desconcerta, mexe com as nossas estruturas e nos tira do comodismo. Talvez por isso ficamos relutantes em dar uma resposta ou fingimos não escutar a voz de Deus que nos chama a seu seguimento.
A vocação não é algo paralelo a história de vida de cada pessoa, pelo batismo somos eleitos e convocados a abraçar uma nova vida em Cristo. A partir desse renascimento se apresenta um caminho que só a pessoa pode percorrer. Em nossa história há uma “teografia”, ou seja, uma escrita de Deus, mas Ele não interfere nos rumos em que decido dar ao enredo da minha história vocacional.
Em Lc 9, 23-24, Jesus revela que um dos critérios para o seu seguimento é “renúncia” e “cruz”, duas palavras que no mundo onde impera o capitalismo, o individualismo e o egocentrismo, parecem ser um absurdo. Como renunciar aos prazeres do consumismo desenfreado? Como renunciar ao desejo de ser feliz seguindo apenas minhas convicções e pensamentos? Como renunciar ao mundo interior no qual resolvi me esconder para não relacionar com os outros que vivem em minha volta? Ou ainda como sair da esfera digital e encarar a realidade que está diante dos meus olhos? Falar de renúncias e vivê-las é um escândalo para a pós-modernidade.
Assumir a cruz de Jesus é um imperativo para uma vocação acertada. Ele mesmo diz: “Quem quiser vir após mim, carregue sua cruz a cada dia e me siga” (Lc 9, 23b). Ir atrás de Jesus é ser discípulo e este escuta a voz do mestre e acolhe os seus ensinamentos. As crises que surgem no contexto vocacional, algumas decorrem pelo fato de rejeitarmos a cruz de Cristo ou quando desanimamos quando ela se presenta a nós. Basta ver a reação de Pedro quando Jesus anuncia pela primeira vez a sua Paixão
(cf. Mt 16, 21-23). Por vezes as crises saem da ótica vocacional e são causadas ou alimentadas por um conflito com a instituição. O teólogo José Maria Lisboa, ao estabelecer uma relação entre carisma e instituição afirma que há uma certa tensão (cf. LISBOA, Teologia da Vocação, 1999).
Ouso dizer que a crise entre o vocacionado presbítero/consagrado e a instituição é tensa e problemática quando não há diálogo e humanidade entre as partes. Da parte da instituição em perceber que seu membro não é apenas um número ou um objeto, mas uma pessoa composta de sentimentos e que precisa ser respeitada e acolhida, inclusive quando colabora para que o carisma se atualize, apresentando boas ideias a instituição, mas sobretudo, pelo testemunho. E da parte do vocacionado em entender que o chamado implica em ouvir o que a instituição, na qual aderiu livremente, tem a dizer e a propor, considerando as suas potencialidades e virtudes, mas também seus limites e entender que a instituição não começou com o seu ingresso, mas tem uma longa história em que o vocacionado é chamado a colaborar.
As crises em si não são motivos para desistir da vocação ou deixar a instituição. Se bem trabalhadas ajudam a amadurecer um sim que foi dado em um ponto determinado da história pessoal de cada um e que precisa ser atualizado diariamente. Nessa tensão entre a pessoa vocacionada e a instituição, o que deve prevalecer é a unidade, a corresponsabilidade e o amor ao carisma e à Igreja. As cruzes pelo caminho, os obstáculos e as lutas diárias não são maiores que a alegria de pertencer a Cristo e à sua Igreja.
Desse modo, a resposta de amor que damos a nossa vocação se encontra com a promessa do Cristo que diz: “Eis que estou com vocês todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28, 20b). Ele não abandona os que chamou e caminha conosco todos os dias assumindo o papel de Cirineu, ajudando a carregar as nossas cruzes e aliviando o peso de nossos fardos. São Vicente de Paulo entendeu isso quando afirma: “Se abandonarmos nossa vocação, é de se temer muito que seja a carne ou o diabo que dela nos retire. Quereríamos obedecer-lhes? Como foi Deus que nos chamou, não parece ser ele que dela nos retire.
Deus não se contradiz.” (SV XI, br, 111). Sigamos nosso caminho na confiança de que Deus nos ampara em nossas crises e nos ajuda a redescobrir a cada dia o sentido da nossa consagração.
Pe. Allan Ferreira, CM
Assessor Espiritual do CNB



